[CURDISTÃO-PALESTINA] MOVIMENTO DE MULHERES LIVRES: QUERIDAS COMPANHEIRAS PALESTINAS!

Fonte: Movimento de Mulheres Livres (www.tevgerajinenazad.com)

Queridas Companheiras Palestinas,

Como Tevgera Jinen Azad (TJA) (Movimento das Mulheres Livres), condenamos com indignação a brutalidade incessante infligida ao povo palestino, especialmente a mulheres e crianças, pelo estado colonialista de Israel. As mulheres curdas em nenhuma circunstância aceitarão esses crimes contra a humanidade cometidos diante dos olhos do mundo e continuarão a se solidarizar com o povo palestino.
O preço que vocês pagaram para defender sua terra, cultura e fé contra o estado ocupante de Israel está registrado na história. Vocês não renunciaram à sua liberdade ou à sua terra, apesar das formas inconcebíveis com que seus filhos foram massacrados, da violência sexual a que foram submetidas e do exílio sistemático. Vocês protegeram a existência da Palestina com seu sangue e resistência.
Esta geografia, que deu origem às civilizações mais antigas e aos valores fundamentais da humanidade, também testemunha regimes cruéis. Os valores criados pela cultura das mulheres estão sendo alvo desses regimes. É um direito defender a própria liberdade contra poderes coloniais, e a existência e o exercício desse direito não podem ser desafiados ou questionados.
Como mulheres curdas, queremos que saibam que sentimos sua dor em nossos corações. No Curdistão, que foi dividido em quatro partes há 100 anos, nossas aldeias foram queimadas, nossos entes queridos foram e ainda estão sendo massacrados. Os grupos dominantes organizaram e continuam a realizar ataques abrangentes contra nossa língua, cultura e as diferentes crenças em nossa geografia. A dor que experimentamos sob esses ataques que visam nos destruir também é comum.
Estamos também historicamente ligadas em nossa raiva e em nossa insistência pela resistência. Como vocês também testemunharam e demonstraram, não é coincidência que as mulheres, que pagam altos preços nas guerras, ofereçam grande resistência. Sabemos que é o amor das mulheres pela liberdade que mais assusta os poderes coloniais. Porque a liberdade para as mulheres significa proteger sua própria terra, criar seus filhos em sua própria língua e manter sua cultura viva com dignidade.
Nós, mulheres, sabemos que levar uma vida de escravidão é uma morte insidiosa e sombria, e é nosso amor pela liberdade que nos faz respirar. Falando na Conferência de Mulheres do Oriente Médio que realizamos juntas em Amed em 2013, a querida Leyla Khaled disse: “Devemos nos unir como mulheres, e mais além, devemos nos unir como povos. Só assim derrotaremos os imperialistas.”
Queridas companheiras palestinas, o medo que os Estados-nação como Israel e Turquia têm das mulheres e da solidariedade feminina mostra nossa força e justiça.
Apoiar as resistências umas das outras no espírito de solidariedade como mulheres é um requisito para uma vida livre. Como mulheres curdas, acreditamos que a luta contra esses ataques será ainda mais fortalecida com a “Confederação Mundial das Mulheres” que será estabelecida pela solidariedade feminina. O poder unido das mulheres libertará a vida no Oriente Médio e trará dias de paz.
Nossa solidariedade, ampliada com a filosofia de ‘Jin! Jiyan! Azadi!’ (Mulher! Vida! Liberdade!), trará a absoluta derrocada dos colonialistas. Acreditamos que as saudações que enviamos a vocês das terras do Curdistão adicionarão força à sua luta e desejamos que saibam que nossos corações estão com vocês.

Viva a resistência das mulheres!
Viva a solidariedade das mulheres!

LANÇAMENTO: “MATANDO E TRANSFORMANDO O HOMEM DOMINANTE”, do Instituto Andrea Wolf (Academia Jineolojî)

O processo de destruição do patriarcado ocorre historicamente em diversas frentes e possibilidades. Dentre as várias tradições de combate pela libertação da sociedade, o povo curdo tem se destacado pela forma como enfrentou o Estado Islâmico e criou um vasto território autodeterminado, baseado nos princípios do Confederalismo Democrático. Essa experiência só foi possível devido ao processo de libertação das mulheres, que há décadas vêm se construindo social e politicamente em novas formas, além de filosoficamente, através da Jineolojî, a ciência das mulheres.

Como um chamado para a destruição do patriarcado, o Instituto Andrea Wolf, da Academia Jineolojî em Rojava, no Curdistão, convida os homens para esta difícil tarefa: reconstruir a sociedade fora dos sistemas capitalista, machista e patriarcal.

Assim, é com enorme felicidade que lançamos hoje o livro “MATANDO E TRANSFORMANDO O HOMEM DOMINANTE”, a primeira tradução em língua portuguesa da obra, com 128 páginas e produzido artesanalmente no tamanho de 12x18cm.

Além do livro, o pôster “JIN, JIYAN, AZADI” será enviado gratuitamente a todas as pessoas que encomendarem a obra.

Para encomendar a obra “MATANDO E TRANSFORMANDO O HOMEM DOMINANTE”, visite nossa loja, em linktr.ee/tsa.editora

ANITA BOTWIN | SE NÃO ESTAMOS AS DEFIS, SUA REVOLUÇÃO NÃO ME INTERESSA

Fonte: El Salto Diário

Marcha feminista antirracista  8M 05-03-21 - 5
20,7% das mulheres vítimas de violência de gênero tinham uma deficiência credenciada. DAVID F. SABADELL

Quase sempre imaginamos um feminismo que englobe a todas, mas nem sempre estamos cientes de todas as realidades, muitas vezes porque falamos pelas demais (eu a primeira) e não damos voz própria àqueles que normalmente não a têm. Eu também não quero me dar a voz da verdade absoluta, mas gostaria de falar sobre a real inclusão das defis no movimento feminista. Gostaria de visibilizar, na medida do possível, as desigualdades que nós, as últimas da fila, experimentamos para que este 8 de março fale de nós, mas conosco.

Somos as últimas depois das últimas porque muitas de nós sequer sabemos o que realmente acontece com a gente, qual é o diagnóstico ou a etiqueta ou a caixa em que nos encaixamos para receber um tratamento, uma certeza, uma esperança. Em vez disso, essas pessoas são frequentemente tratadas como exageradas, histéricas, em vez de reconhecerem o déficit dos serviços públicos, a saturação dos cuidados de saúde ou os limites científicos. Em vez de reconhecer que estas são enfermidades das mulheres, e que a ciência tem estado mais ocupada em estudar os homens, mesmo sabendo de fato que existem patologias que ocorrem de forma diferente nas mulheres do que nos homens.

As aleijadas, as loucas, as neurodivergentes, não podemos cuidar ou criar como se espera, ou pelo menos não da maneira convencional e sem apoios. Isto nos deixa em uma espécie de limbo e em muitos casos parecemos ser um fardo para os outros. As coisas não saíram como se esperava de nós, somos as garotas estranhas no baile. Não temos idade suficiente para ser cuidadas e não fazemos o suficiente para nos melhorarmos, não nos levantamos porque somos preguiçosas ou não temos atitude, não ficamos bem porque não nos esforçamos o suficiente.

Estamos enfermas porque queremos estar, e em vez de cuidar de nós, precisam nos apoiar, porque o capacitismo não entende outras maneiras de nos entender ou de ler nossos corpos com outras perspectivas que vão além do que as pessoas podem oferecer aos outros em termos materiais e tradicionais.

É por isso que somos as últimas, porque não cuidamos, que é o papel que se esperava de nós mesmo antes de nascermos, e não somamos números à nossa conta corrente, mas mal vivemos com pensões ridículas ou subsídios ainda mais ridículos, ajudas estatais vergonhosas que às vezes são ainda mais dolorosas do que a própria enfermidade. A imagem das mulheres com deficiências é invisível porque elas não se encaixam nos papéis de gênero tradicionalmente atribuídos. Falemos claramente, não somos nós que somos deficientes, é o sistema patriarcal opressivo e capacitista que nos incapacita e nos deixa de lado, vivendo à margem e muitas de nós não podem sequer levantar a voz porque ninguém nos ouve. Não sei como mais de uma pessoa não se envergonha quando vê as cifras devastadores da pobreza em nosso coletivo, não sei como não se modifica o sistema de pensão ou porque a vida não é facilitada para as pessoas que têm mais dificuldades.

Em muitos casos, tentamos entrar na roda de hamster do sistema e produzir e consumir como o resto, e não fazer barulho, passar despercebidas, brincar de “ser normal”, mas a realidade te devolve ao teu lugar de aleijada. Porque não somos nós as que estamos mal, é um sistema e um mercado que nos marginaliza e nos cospe para fora.

Além disso, entre as defis se encontra a maior porcentagem de violência machista e, de fato, 20,7% das mulheres vítimas de violência de gênero tinham uma deficiência credenciada, de acordo com a última pesquisa de grande abrangência do Governo; e 10% das assassinadas por seus parceiros ou ex-parceiros tinham algum tipo de deficiência. Muitas mulheres com uma deficiência, com ou sem um diagnóstico, têm problemas especiais para denunciar e em alguns casos não foram levadas a sério devido a suas patologias ou problemas de saúde mental. Os protocolos avançam pouco a pouco, mas historicamente tem havido muitas dificuldades para que mulheres não-normativas tenham as mesmas oportunidades que outras para apresentar uma denúncia, em muitos casos porque não havia acessibilidade para elas.

Sem irmos longe, em Londres as casas de acolhida para mulheres sobreviventes de violência de gênero não são acessíveis, segundo conta Frances Ryan em Tullidos: austeridad y demonización de las personas discapacitadas de Capitan Swing.

Somos as últimas das últimas junto a nossas irmãs racializadas, migrantes, trans, pobres e precárias do mundo, das quais quase ninguém ou quase ninguém se recorda Por isso é importante um 8 de março que conte conosco, além de nos incluir nos manifestos, de forma real e com o máximo de acessibilidade possível.

É por isso que é tão importante que o 8 de março nos leve em conta, que sejamos sujeito político e que apareçamos nos comunicados, mas também nas exigências que devem ser feitas. Muitas de nós não poderemos ir às manifestações por causa de nossas circunstâncias de vida ou da falta de acessibilidade com a qual temos que conviver, mas seu grito será ouvido alto de seus recantos, de cada uma das nossas próprias casas. Tão somente temos que realizar escuta ativa para interiorizá-lo, porque se não estivermos lá, as coxas, as surdas, as loucas, as neurodivergentes, as cegas… se não estamos as defis, sua revolução não me interessa.


Anita Botwin é uma jornalista e ativista. Formada em Comunicação Audiovisual e tem mestrado em Criatividade e Roteiro de Televisão pela Universidad Rey Juan Carlos. Trabalhou como roteirista para séries e programas de TV como El intermedio, Aída e Águila Roja, e escreve regularmente para vários veículos de comunicação. Twitter: @AnitaBotwin

MELIKE YAŞAR | PODEMOS CONVERTER O SÉCULO XXI NA ERA DA LIBERTAÇÃO DAS MULHERES

Fonte: Ctxt.es

Não aceitamos a ideia de que o direito de viver em paz seja visto como uma utopia. Não apenas não aceitamos, mas todos os nossos esforços e iniciativas, como Movimento de Libertação e particularmente como Movimento de Mulheres Livres do Curdistão, vão nessa direção, justamente para ir além de pensar em alternativas dentro da estrutura de possibilidades que este sistema nos oferece.

Saudamos estes encontros, porque entendemos eles como uma continuação de tantos outros que temos promovido, como os da rede Mulheres Tecendo o Futuro em 2022, que reuniu em Berlim 700 participantes de 50 países. Para nós, não são apenas espaços para reafirmar a solidariedade ativa com a Revolução no Curdistão, não são apenas um lugar para reconhecer e abraçar outras experiências revolucionárias de outros continentes, mas são verdadeiras oportunidades para avançar na construção de uma agenda comum que nos permitirá definir objetivos claros e alcançar transformações concretas.

A partir do nosso Movimento não temos dúvidas de que estamos em um momento único na história, onde todas as condições necessárias estão reunidas para realizar uma autêntica revolução. Dizemos sem medo de contradições que podemos transformar o século 21 na era da libertação das mulheres!

Sabemos que o sistema dominante é engenhoso e que estamos enfrentando os ataques intensificados de uma hegemonia patriarcal que procura perpetuar sua existência. É por isso que é imperativo organizar nossa luta em escala global em todas as frentes. É necessário e urgente superar a fragmentação e construir uma maior coordenação entre os movimentos de mulheres em todo o mundo, a fim de alcançar um nível mais elevado de organização e transformar nossa resistência em avanços radicais e sustentáveis que revertam as condições atuais da vida.

O aprofundamento das políticas de morte realizadas pelos Estados e por toda a rede que as torna possíveis – desde as corporações transnacionais com seu acúmulo extrativista, as indústrias de armas até os meios de desinformação em massa – exige que apressemos o tempo de ação. Temos a capacidade de fazê-lo. Isto é demonstrado por nossa memória histórica de lutas, construídas a partir de uma visão do mundo muito distante de suas lógicas racistas, patriarcais, mercantilistas e colonizadoras. São estas mesmas experiências que nos mostraram que o nível de liberdade da sociedade é medido pela liberdade das mulheres. Como nosso líder Abdullah Öcalan – encarcerado em isolamento na ilha-prisão de Imrali na Turquia há 24 anos – argumenta, “não pode haver sociedade livre sem mulheres livres”.

Esta definição é crucial em nosso paradigma de Confederalismo Democrático, e é precisamente seu conceito de integralidade que não nos permite conceber de forma dissociada a luta pela libertação das mulheres, pelo cuidado da natureza, pela democratização de todas as áreas da vida, pela igualdade de gênero ou pela proteção dos direitos humanos, assim como a necessária participação ativa de todos os setores da sociedade que são ameaçados e oprimidos por este sistema. 

Uma luta centrada na libertação da mulher tem o potencial de alcançar um nível mais universal do que qualquer outra luta dos séculos anteriores. Entretanto, não é possível desenvolver uma alternativa dentro do sistema dominante, apelando para seus meios e métodos, muito menos dentro dos limites materiais, morais e institucionais estabelecidos pelo próprio sistema. Não basta declarar-se antifascista, anticolonial, antirracista, antimilitarista. Devemos lutar ativa e efetivamente contra todas as expressões da mentalidade masculina dominante que se manifestam além da biologia. Sem esta mudança, a libertação da sociedade não será possível.

Somos parte de um povo que enfrenta esta mentalidade em sua máxima expressão através da guerra. Sabemos que um confronto militar direto entre dois ou mais exércitos regulares não é mais suficiente para iniciar uma guerra. Com isto em mente, qual é a nossa própria definição de paz: a paz é apenas abandonar as armas? Sabemos que a resposta é não. E também sabemos que, num contexto de vida ou morte, os discursos sobre desarmamento e não-violência acabam sendo um privilégio.

Não é menos verdade que a multiplicidade de frentes e níveis de ataque nos obriga, a nós, povos em resistência, e particularmente as mulheres, a reformular nossas estratégias de defesa e de autodefesa. É bem conhecido que homens e mulheres não são afetados igualmente em contextos de guerra e violência generalizada. A história da civilização é a história de uma guerra contra as mulheres. Uma guerra que é travada em nossos corpos-territórios. Para as mulheres curdas, esta situação não é nova. É uma realidade que tem sido constantemente mantida tanto em períodos de relativa paz quanto naqueles em que a guerra se intensifica em suas formas clássicas.

Nossa luta pela liberdade e o legítimo direito à autodeterminação envolve não apenas o povo curdo, mas muitos outros povos do Oriente Médio, e se tornou uma inspiração para outros povos do mundo, distantes apenas geograficamente.

Desde as origens de nosso Movimento e através da luta contra o colonialismo e todas as formas de opressão, temos avançado em paralelo na politização e conscientização das mulheres a ponto de hackear os papéis tradicionais que nos foram atribuídos social e culturalmente, dentro e fora de nossas próprias comunidades.

Este trabalho foi feito cara a cara, casa a casa. Não poderíamos tê-lo feito de outra forma. Somos filhas e filhos de um povo que aprendeu a desenvolver todo o seu potencial revolucionário não apenas na resistência, mas na coragem de ter ousado participar de debates importantes e fazer mudanças profundas que eram impensáveis não há muito tempo. Isto foi possível ao revelar o contexto histórico, social e de poder por trás de conceitos que pareciam inquestionáveis em nossas sociedades, tais como o conceito de “dote” ou “morte por honra”, ou os atos de poder que se escondem atrás de cada crime contra as mulheres, atrás de estupro, atrás de femicídios.

A partir de uma pedagogia coletiva, trazemos os tabus da sociedade da esfera privada para a esfera pública e tentamos tornar seus mecanismos compreensíveis como parte de um sistema mais complexo de opressão. Por um lado, mostramos às mulheres que não é seu destino natural sofrer violência e, por outro lado, mostramos aos homens que nada os força a se tornarem perpetradores.

Vemos nosso trabalho como um trabalho constante de educação e treinamento que trouxe uma revolução na mentalidade. Isto resultou no fortalecimento de nossa organização e de nosso povo.

Tomamos cada vez mais consciência de que a violência contra as mulheres não é apenas o resultado de papéis patriarcais tradicionais de gênero, mas que é amplamente viabilizada por políticas estatais que, longe de abordar o problema de forma estrutural, apenas implementam medidas cosméticas que nada fazem para mudar a realidade que enfrentamos.

É necessário enfatizar a dimensão política e a responsabilidade dos governos em todos esses crimes. Todas as lógicas do poder patriarcal, colonial e estatal/capitalista convergem no ato do feminicídio. Os femicídios são uma das faces mais brutais da cadeia de violência que enfrentamos e, como mulheres curdas, é uma questão que nos afeta direta e profundamente, seja durante os conflitos armados ou na vida cotidiana.

Reconhecemos o trabalho e o esforço por trás de cada lei aprovada, cada resolução assinada, cada medida tomada com a vontade de eliminar a violência contra as mulheres. Mas a realidade contradiz a boa vontade. Os Estados assinaram e continuam a assinar compromissos nos quais assumem a responsabilidade de assegurar ativamente que este tipo de violência seja eliminado. Entretanto, devido a múltiplos fatores, nossa confiança não pode mais ser colocada ou condicionada pelos Estados e suas políticas dilatórias que garantem a impunidade. Continuaremos insistindo para que os governos discutam e tratem estas questões de maneira correta, sem nos deixar enganar pelas conquistas obtidas e muito menos esquecendo que estas conquistas e avanços, especialmente em assuntos legislativos, devem ser permanentemente monitorados para que não se tornem letra morta.

Também continuaremos insistindo até que os Estados reconheçam oficialmente que os feminicídios são parte de um genocídio em curso, uma violação flagrante dos direitos humanos que não pode ser dividida em categorias não relacionadas como “violência em zonas de conflito”, “violência doméstica”, “violência trabalhista”, “violência econômica” ou “violência institucional”. Sua soma total corresponde à opressão sistemática à qual estamos expostas e corresponde à predominância de um certo tipo de mentalidade que precisa ser desmontada. A mesma mentalidade patriarcal, responsável por atrocidades em guerras e áreas de conflito, produz agressões diárias e ataques sexuais contra as mulheres, contra corpos feminizados, de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

É a mesma mentalidade que leva ao apedrejamento até a morte das mulheres por não cumprir códigos morais arbitrários e que encontra no comprimento de uma saia ou em uma mecha de cabelo que se vê atrás de um hijab, as desculpas para cometer seus crimes misóginos. As mulheres não estamos seguras em nenhum lugar do mundo. A partir de nosso Movimento, caracterizamos esta situação como uma guerra total – não declarada – contra as mulheres. Portanto, é hora de desenvolver estratégias comuns e unificadas. Construir uma aliança em escala global que nos permita encontrar soluções radicais e, portanto, efetivas.

Nossa experiência revolucionária em Rojava, norte e leste da Síria, que vem sendo construída desde 2012, logo após o início das revoltas, mostra que existem outros caminhos. Apesar dos ataques sistemáticos que enfrentamos a partir dos quatro estados ocupantes em nosso território. Apesar de ser difícil desmantelar as campanhas de desinformação e estigmatização que os poderes que estão tentando instalar em nosso povo e em nosso projeto de organização política e social.

Em Rojava, as profundas mudanças na vida, especialmente na vida das mulheres, não são mais meras teorias políticas. Ali, as mulheres estão organizadas de forma autônoma e construíram seu próprio sistema social e governamental. As mulheres se tornaram uma força de liderança socialmente legitimada. Isto aconteceu não apenas devido às ações heroicas das milícias femininas na luta contra o Estado islâmico.

Mas porque elas decidiram nunca mais renunciar à tomada de decisões, nunca mais deixar que suas vozes fossem silenciadas pelas dos homens.

Em todo o Curdistão, ninguém mais contesta que os cargos executivos devem ser exercidos igualmente.

Em Rojava, um Contrato Social estabeleceu a participação equitativa e rotativa de homens e mulheres em assembleias, conselhos civis e cargos comunais em diferentes áreas e em diferentes níveis. Um tipo de organização baseada na democracia direta e numa perspectiva feminista e ecológica.

Podem se perguntar como é que as mulheres curdas se juntaram à luta contra o ISIS em tais números e porque estamos na vanguarda da luta. É claro que isto não foi possível da noite para o dia. É uma luta que vem ocorrendo há mais de 40 anos. Mas a resposta a essa pergunta é simplesmente: porque assumimos em nossas próprias mãos o cuidado da vida.

Vou dar um exemplo muito claro: a fronteira entre a Turquia e a Síria foi o cenário do último terremoto que deixou mais de 45.000 mortos até agora. Na região do Curdistão, independentemente das fronteiras impostas pelo Estado, existem comunidades autônomas curdas, árabes e alevitas. Nenhuma ajuda humanitária chegou a todas essas comunidades. A pouca ajuda que os governos têm prestado tem sido desigual e militarizada.

Foram os municípios curdos autônomos, as associações de mulheres e a sociedade como um todo que se organizaram e procuraram ajuda e operações de resgate, que não vieram e não virão do Estado, além da propaganda.  São eles que resgataram seus mortos dos escombros.

Em Rojava e em toda a Síria, o terremoto atingiu uma área devastada por uma guerra internacional que desalojou milhares de pessoas. As mulheres que lá vivem foram as que reconstruíram estas cidades com suas próprias mãos após a libertação do ISIS. Elas reconstruíram suas casas e suas vidas. Na noite seguinte ao terremoto, no meio da declaração de emergência, a Turquia realizou uma operação militar e bombardeou a área.

Esta é a situação atual. Neste contexto, é a organização das comunas que garante a vida, porque aprendemos a preparar e a construir a paz em tempos de guerra. Em resumo, porque em nosso projeto, a autogestão e a autodefesa são uma necessidade tão vital quanto respirar. Sem autodefesa, não há vida.

Claro que usamos armas para nos defendermos, mas o uso de armas é apenas um aspecto técnico de um conceito muito mais profundo que não é tratado em nível individual, mas é estabelecido e consolidado em nível social, psicológico, emocional e também físico. Através do compromisso e da organização autônoma do Movimento das Mulheres, a sociedade continua sua transformação, e com ela a transformação de todas as suas estruturas patriarcais que produzem desigualdade e violência contra as mulheres. Este trabalho também acontece em nível interpessoal, atacando a própria mentalidade que orienta as práticas dos homens e acaba reproduzindo a ideologia da dominação masculina. Isto é fundamental para entender do que estamos falando quando falamos de autodefesa. Para nós, autodefesa significa paz e, para garantir isso, a transformação da sociedade é necessária.

Neste processo, foi muito importante a criação das Academias Jineolojî. A Jineolojî é a ciência social das mulheres do Curdistão. É uma produção de conhecimento que não é gerada a partir de espaços institucionais ligados ao poder, mas a partir da experiência da luta das mulheres. É lá que encontramos as soluções que estamos procurando. Esta ciência é a estrutura da análise que o Movimento curdo vem desenvolvendo desde 2008 e é feita a partir das comunas populares de mulheres, é feita a partir de todos os níveis da auto-organização, nas quatro partes do Curdistão e também na Europa. Trata dos campos da demografia, ecologia, economia, ética e estética, saúde, educação e política. De todos os aspectos da vida, rompendo o círculo acadêmico. Jineolojî é um método para a autodefesa.

Como aquele que encontramos na natureza. É a partir desta interrelação com a natureza que estabelecemos nossa própria ética e nossa própria visão do mundo. As pessoas ficam surpresas quando falamos de estética. Mas não é nada como certos padrões de beleza, e muito menos como os impostos por este sistema capitalista e patriarcal, que nos transforma em objetos. Rejeitamos de forma absoluta esta visão fetichizada e romantizada das mulheres lutadoras de nosso povo que o Ocidente impôs e reproduziu, pois seu objetivo era desviar a atenção para aspectos superficiais e, ao fazê-lo, esconder as verdadeiras e profundas motivações de nossa luta a fim de esvaziá-las de sentido.

Em suas imagens estetizantes do horror da guerra e do sofrimento de nosso povo, não havia espaço para tornar visíveis nossos objetivos: construir uma sociedade na qual não houvesse lugar para qualquer tipo de violência patriarcal, uma sociedade de paz como aquela que todas nós queremos construir aqui e agora.

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Melike Yaşar é representante do Movimento de Mulheres do Curdistão e membro do Congresso Nacional do Curdistão (KNK) desde 2008.

Este trabalho foi apresentado na Reunião Feminista Internacional organizada pelo Ministério da Igualdade (fevereiro de 2022).